Pois é, eu
sou do tempo em que a maioria das músicas, tinha um começo meio e fim... E o
mais interessante: não eram escritas totalmente ao acaso,
mas sim, tinham um "PQ" por
trás, um motivo, uma base, todo um contexto, fosse ele social, histórico,
político...
Acredito
que um dos períodos mais férteis da música
brasileira, foi justamente no período da censura, da ditadura, onde se
controlava até a respiração e o número de piscadas do indivíduo... E para que
sua música fosse divulgada, e para não sofrer nenhum tipo de represália, agressão,
fosse ela física ou moral, foi-se usada e abusada a sutileza, o "quero
dizer, mas não disse" e principalmente o
"ler nas entrelinhas"...
Um exemplo
disso é a música "O Bêbado & A Equilibrista", onde
no vídeo acima, a querida Elis Regina majestosamente interpreta, com melodia de
João Bosco, e letra de Aldir Blanc, e
gravada em 1979, período esse de grande repressão nas ideologias e assim,
perseguições políticas... Se pegarmos parágrafo por parágrafo, teremos quase
que uma completa aula de história do
nosso BRASIL, tão vivo, intenso e pulsante, além de fortes
pitadas de protestos e denúncias...
Deixe-me
fazer uma análise, em especial dessa música, para melhor ilustrar a ideia de se
expressar sem ser explícito:
"Caía a tarde feito um viaduto
E um bêbado trajando luto
Me lembrou Carlitos..."
Em poucas
palavras, começa aludindo à queda da tarde, ao período em que ocorriam as
torturas, e liga a duas tragédias muito semelhantes ocorridas ambas em 1971,
mas em Estados diferentes (um elevado no Rio de Janeiro e um pavilhão, em Belo Horizonte), que
ceifaram muitas vidas... Mas por outro lado, quase como um contraste,
pode-se observar um “certo” otimismo que o país vivia até meados de 1960, tendo a
figura de Carlitos (Charles Chaplin), que mesmo pobre, era um bom
rapaz e muito bem educado...
... "A lua
Tal qual a dona do bordel
Pedia a cada estrela fria
Um brilho de aluguel...
E nuvens!
Lá no mata-borrão do céu
Chupavam manchas torturadas
Que sufoco!
Louco!..."
Nesta
estrofe, tem na luz da lua, o reflexo da luz do sol, remetendo a luz dos bons
tempos do passado... Já nas linhas seguintes, a música nos revela uma forma
figurada de se falar das consequências da ditadura, como as torturas cometidas,
os exílios forçados, as pessoas desaparecidas, as famílias dilaceradas...
Visto por
outro ângulo, o mesmo trecho, a lua em
questão, representa os poderosos que exploram os trabalhadores, (aqui,
na figura dos prostíbulos), mas que nada mais eram os
políticos que se "venderam" aos
militares, em roca de "favores"...
Por fim, a
figura do mata-borrão, era
um modo de falar de como eram "apagados"
aqueles que saiam da linha, que desobedeciam as regras do período da
ditadura...
"O bêbado com chapéu côco,
Fazia irreverências mil,
pra noite do Brasil,"...
Aqui,
parece que o mesmo gentil homem de classe menos favorecida, mesmo com todas as
dificuldades, buscava no sorriso e na brincadeira, um modo de driblar a
tristeza...
... "Meu Brasil...
Que sonha, com a volta do irmão do Henfil
Com tanta gente que partiu, num rabo de foguete
Chora, a nossa PÁTRIA mãe gentil,
Choram Marias e Clarisses no solo do Brasil"...
Aqui fica
muito claro que a música fala daqueles que foram forçados a saírem do país,
exilados, como o irmão do Betinho, Henfil,
(pseudônimo do Jornalista Henrique Filho), além dos que foram perseguidos, torturados e
mortos no DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações -
Centro de Operações de Defesa Interna), como Vladimir
Herzog, marido da "Clarices" mencionada
em seguida, além da tal "Maria", tb esposa
de um metalúrgico torturado até a morte, acusado de fazer parte do Partido Comunista Brasileiro (PCB),
mas seu verdadeiro crime foi ler o jornal "A VOZ OPERÁRIA"...
Também, as tais "Marias & Clarices",
que a música traz, não se restringem apenas a essas duas mulheres acima
mencionadas, mas também a todas as mães, filhas ou esposas que sofreram as
perdas de seus amores, filhos , irmãos e amados... Enfim, percebe-se uma leve
ironia, num mínimo trecho do Hino Nacional Brasileiro, onde um Estado onde ao
contrário de defender, mata seus
filhos...
“Mas sei, que uma dor
Assim pungente
Não há de ser inutilmente
A esperança
Dança na corda bamba
De sombrinha
E em cada passo
Dessa linha
Pode se machucar"...
O povo,
mesmo oprimido, reprimido, sofrido, censurado, vivendo na corda bamba das
regras dos militares, sobrevivendo da clausura de um mundo sem cor, sem vida,
sem liberdade, sonha e luta por um novo amanhecer, dias melhores...
... "Azar
A esperança equilibrista
Sabe que o show
De todo artista
Tem que continuar...”
E,
finalmente, independente do que e de como ocorresse tal reviravolta, não ia se
esquecer facilmente de todas as lágrimas derramadas e marcas deixadas por era a
partir de todas as dores, e tinham, além da esperança, a certeza de que um dia
o jogo ia virar, e que teriam força e coragem suficiente para dar o troco, para
viverem a vida cada um com sua arte de viver e acreditar sempre, em mudanças
para melhor...
Seguindo,
cito aqui um "gran-mestre" na arte
de sugerir, encobrir, "dizer sem
dizer", e que muito cantou esse período de silêncios, foi (e ainda
é), célebre o trovador Francisco Buarque de Holanda, vulgo Chico
Buarque... Aqui, vou apenas citar algumas de suas maiores e mais
fortes obras, onde a primeira “Apesar De Você”, ele mesmo
de “cabeça baixa”, vai aos poucos se preparando para a revanche, com fortes
argumentos, justificando sua luta contra tanto controle, dor e tristeza,
sofridos nesse mesmo período da ditadura no Brasil... E por outro lado, em “A
Banda”, onde a letra
fala muito de uma “distração” que simplesmente passa por uma cidade, e por
alguns instantes, seus moradores se esquecem de seus “afazeres”, e se deixam
levar por aquela alegria, mesmo que momentânea...
Outro
exemplo é “Valsinha”, onde a
letra dá a entender, que um casal, que há muito não se permitia quebrar regras
(ou uma rotina marcada por mesmices), se entregam às redescobertas do amor, do
querer-bem, e de tanto se envolverem e libertarem das amarras de um dia-a-dia
maçante e controlado, acabam por despertar todo seu entorno, contagiando
a tudo e a todos, exalando enfim, sentimentos e energias positivas, assim como
a tão sonhada PAZ... Outras
como “Cálice”, “Chame O Ladrão”, “Fado
Tropical”, “Roda Viva”...
Entre
outros nomes que não necessariamente se omitiram, e com a cara, a coragem, a
voz e um instrumento, cantaram e encantaram, tanto os horrores, como as
esperanças, as belezas, temos Geraldo Vandré, com “Pra
Não Dizer Que Não Falei De Flores”, Caetano
Veloso, com “É Proibido Proibir”, ou
ainda, do mesmo, “Alegria, Alegria”, de João
Ricardo e João Apolinário, interpretado brilhantemente por um grupo chamado Secos
e Molhados, “Primavera Nos Dentes”, de Raul
Seixas, “Mosca Na Sopa”, de Taiguara,
“Que As Crianças Cantem Livres”, de Gonzaguinha, “É...”...
Enfim, o
tenebroso período da ditadura brasileira, (que ocorreu entre 31/03/1964, com o
golpe militar, até 15/03/1985, quando
José Sarney
assumiu a presidência, mesmo que o eleito tenha sido Tancredo Neves, mas o
mesmo, já estava doente e não resistiu), foi uma corajosa época no quesito “gritar a verdade,
por liberdade, pela vida”, mesmo que de forma não explícita, em todo
e qualquer modo de manifestação artística e cultural, não só na música... Foi
um período de grandes nomes, letras, textos, músicas, obras, manifestações
teatrais, etc, pois o medo velava o que a coragem queria expor aos 4 ventos,
para que todos soubessem a verdade e sentissem a força e a criatividade que tem
um povo sofrido, sedento de VOZ e
de VEZ...
Assim, não acredito ser possível aceitar pura e simplesmente toda e qualquer
música, mas é muito mágico saber o que existe por trás das letras, principalmente
as escritas nesta fase da nossa história, assim como já disse em outro texto,
sobre as obras de arte...
Uma vez,
alguém me disse que "Conhecimento Não Ocupa Espaço", e com
isso, saber não só o que pode estar tanto por trás de uma obra, de uma poesia,
quanto de uma música, só acrescenta, enriquece e entendemos ainda mais o valor
daquela manifestação artística e compreendemos ainda mais, conhecendo seu
contexto histórico, e assim, mesmo que tenhamos uma outra visão, e/ou opinião,
sabemos a verdade e o motivo pelo qual tal obra foi criada...